Para onde nos levas, tempo?


“Para onde nos levas, tempo?”, crónica de domingo, na Bird Magazine.

É domingo. Escrevo-te do passado. Hoje é sábado, mas os meus dedos viram as estrelas que serpenteiam quando voo e decidiram casar com o dia de amanhã.
Talvez agora, no futuro, não sintas o frio que a noite traz, porque no teu corpo vivem as brasas de uma lareira recentemente apagada e nem o fumo, que ela teima em fazer crescer, te faz lacrimejar de saudade dum outro futuro.
Sentado na cadeira, os contos de Mestre Torga pululam-me no regaço, fechados com medo de os acabar depressa demais. Agora que me entretenho a olhar a ligeira e trémula chama azul e amarela no pavio retorcido, engomado, quase dobrado, sem aviso trazem-me a visão do Marão, do lado direito, e o vento frio que arrefece ainda mais, a subir para a terra onde mandam os que lá estão. Há um vento normal e um vento arrefecido, o que parece viver ali, entre a Pousada e o pequeno parque à esquerda, antes de começar a descer, que me força a abrir o vidro sempre que subo aquele troço do IP4 e me enregela a cara até deixar de a sentir. Chama-se imaginação, o vento e o momento.
Das vezes que chove e o Sol espreita, iluminando os pinheiros, regando de luz a caruma e as giestas que ondulam. (E, sei lá, se são giestas ou pinheiros?) Para mim têm todas a mesma cor, verde, azul e cinzento, das cores do que sonho quando a estrada se percorre por baixo do meu corpo e faz tempo (como se o tempo pudesse ser feito) que não leio o que escrevo, um pouco como tu.
Uma folha em branco basta, debaixo do despertador, com a caneta ansiosa a descansar de me levar para todo o lado. Os sonhos cansam-se de esperar pelos sonhador. Até mesmo aquele nosso eu que se desprende de nós próprios e corre, chamando-nos, está parado, sentado num marco da estrada, rabiscando umas distâncias e nomes de terras que ainda nem floriram.
Ainda na folha, em branco, deitam-se a dormir as dúvidas e crenças, mas rapidamente tornam-se fugidias, sem pouso certo levantam voo e aguardam ao lado da cabeceira da cama, pousando nos olhos, quando tentamos adormecer, içando a noite para os sonhos carregados de montes e vales, de veredas por onde nunca iremos entrar.
Confesso que me assusto, ao ver que nada vejo, ao ouvir a surdez que abafa os dias quando nos carregamos de um lado para o outro, na sofreguidão de chegarmos onde não estamos. Por vezes, em certas noites como esta, acerco-me de um qualquer ideal e rezo, para que não me esqueça de colocar alguns bocados de nuvem no peito, para que nunca soçobre a alma, nem a vontade de chegar aos sorrisos que ainda não vi, aos olhares de onde ainda não sorvi.
E é assim, quando me encontro em viagem, que me busco em mim mesmo num destino.

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